Drummond foi o meu anjo torto |
O dia a dia, que junta todas aquelas coisas burocráticas, certinhas e quadradas, teima em nos afastar do mundo do arco-íris que existe na dimensão poética. Mesmo sendo pouco visitado, ele continua lá. É só entrar e se aconchegar... no meu caso, sempre que consigo me desligar daqui e ir pra lá, encontro Drummond sentado no chão, com um sorriso nos finos lábios e um livro na mão. Leio, leio, leio. No fim, ele sempre acerta. Na mosca.
Nestes seis anos, foram inúmeras poesias encontradas ao abrir os seus livros, alguns tão especiais que se tornaram "livros de cabeceira". Foi em um desses, o "Alguma Poesia", que eu encontrei o poema que publico abaixo. É um daqueles que eu comentei acima, que depois que você termina de ler, pensa: "como ele conseguiu descrever o que eu tô sentindo?".
APARIÇÃO AMOROSA
Doce fantasma, por que me visitas
como em outros tempos nossos corpos se visitavam?
Tua transparência roça-me a pele, convida
a refazermos carícias impraticáveis: ninguém nunca
um beijo recebeu de rosto consumido.
Mas insistes, doçura. Ouço-te a voz,
mesma voz, mesmo timbre,
mesmas leves sílabas,
e aquele mesmo longo arquejo
em que te esvaías de prazer,
e nosso final descanso de camurça.
Então, convicto,
ouço teu nome, única parte de ti que não se dissolve
e continua existindo, puro som.
Aperto… o quê? a massa de ar em que te converteste
e beijo, beijo intensamente o nada.
Amado ser destruído, por que voltas
e és tão real assim tão ilusório?
Já nem distingo mais se és sombra
ou sombra sempre foste, e nossa história
invenção de livro soletrado
sob pestanas sonolentas.
Terei um dia conhecido
teu vero corpo como hoje o sei
de enlaçar o vapor como se enlaça
uma idéia platônica no espaço?
O desejo perdura em ti que já não és,
querida ausente, a perseguir-me, suave?
Nunca pensei que os mortos
o mesmo ardor tivessem de outros dias
e no-lo transmitissem com chupadas
de fogo aceso e gelo matizados.
Tua visita ardente me consola.
Tua visita ardente me desola.
Tua visita, apenas uma esmola.